
BRILHA SERTÃO: QUANDO A CULTURA POPULAR VIRA FERRAMENTA DE REEXISTÊNCIA E O AMOR, UM ATO POLÍTICO
Por Martin Vallio
“A cultura é o exercício profundo da identidade.” — Paulo Freire.
No coração do semiárido, onde a terra resiste com sede e a alma floresce com festa, nasceu uma estrela que não pede licença para brilhar: a Junina Brilha Sertão. Mais do que um grupo de dança, mais do que um espetáculo junino, essa quadrilha é um corpo coletivo que pisa forte no chão da história, sacode as estruturas da memória e planta, a cada passo, um novo futuro para o sertão.
Na 3ª edição do Festival de Quadrilhas Juninas – Etapa Vale dos Sertões 2025, Brilha Sertão não apenas participou. Ela ressignificou o espaço cênico com a potência de quem entende que tradição não é prisão no passado, mas janela aberta para o que virá. Com a temática provocadora e profundamente simbólica “Um amor em meio à revolução”, a quadrilha traçou uma linha tênue e belíssima entre o íntimo e o coletivo, o romance e o levante, o afeto e a luta.
AMOR COMO SUBVERSÃO
Baseado na história real de João Dantas e Anaíde Beiriz, o enredo evoca a inquietante tensão entre liberdade amorosa e repressão política. Ele, envolvido em disputas que culminariam na Revolução de 1930. Ela, mulher, poeta, professora, anarquista de ideias e gestos — morta não apenas pela tragédia da bala, mas também pelo moralismo da sociedade patriarcal da época. A narrativa, no entanto, não se limita ao casal. Ela se expande e explode em metáfora viva para o próprio Nordeste: apaixonado, injustiçado, complexo, queimando por dentro e ainda assim dançando.
Através da liberdade poética e dramatúrgica, a quadrilha entrelaça essa história com episódios e figuras icônicas da Revolução de Princesa Isabel, como o Coronel Zé Pereira, senhor da resistência armada; Lampião e Maria Bonita, espectros de justiça popular e desobediência institucional; e Santo Antônio, o símbolo da fé que, nos festejos juninos, também assume a face do humor e do milagre.
Com personagens-criação como o repentista, o guarda, o entregador de jornais e a dona da casa das Mulheres, Brilha Sertão reafirma o que grandes teóricos como Stuart Hall e Raymond Williams já defenderam: a cultura popular é um território de disputa simbólica, onde a memória é recriada e as vozes silenciadas ganham corpo.
O PALCO COMO LUGAR DE RESISTÊNCIA
Se a arte é linguagem, a quadrilha é um idioma ancestral que mistura fé, festa, política e pedagogia. A cada figurino bordado por mãos da comunidade, a cada música ensaiada sob o chiado da seca, a cada ensaio vencido à luz de lamparina ou à beira da estrada, há um projeto educacional informal em ação. A Brilha Sertão é um microcosmo do que Paulo Freire chamou de educação libertadora, onde se aprende o mundo enquanto se dança sobre ele.
E os resultados vieram não só em forma de aplausos, mas de reconhecimentos concretos:
🥉 3º lugar como Melhor Marcador, com Maycon Marinho, guardião do enredo.
🥈 2º lugar como Melhor Rainha, com a força e elegância de Marcilene Silva.
🥇 1º lugar como Melhor Casal de Noivos, com Eduarda Santos e Daniel Cardoso, que encarnaram o amor revolucionário.
🏆 1º lugar entre as Quadrilhas Juninas da Noite, garantindo vaga na etapa estadual, que acontece no próximo 15 de junho, em João Pessoa.
TRANSFORMAÇÃO SOCIAL E ECONÔMICA
Mas para além dos troféus, o que essa quadrilha representa? Um projeto de desenvolvimento social e econômico baseado na cultura.
A cultura junina movimenta cadeias produtivas inteiras: costureiras, marceneiros, eletricistas, músicos, coreógrafos, educadores, cenógrafos, cozinheiras, pequenos comércios locais. Cada real investido numa quadrilha é multiplicado em afeto, identidade, emprego, autoestima e pertencimento. É o que Gilberto Gil, ex-ministro da Cultura e ícone da transversalidade cultural, defendia: “Cultura não é ornamento, é infraestrutura invisível de um povo.”
A Brilha Sertão prova, com seu próprio corpo, que onde o Estado não chega com dignidade, a cultura chega com esperança. Mas isso não pode se sustentar apenas com o heroísmo dos artistas populares. É preciso política pública de base, financiamento contínuo, políticas de fomento estáveis e apoio da iniciativa privada comprometida com impacto social real.
UMA CULTURA QUE REEXISTE
Investir na Junina Brilha Sertão é investir na permanência do povo no território. É afirmar que o sertão não é problema a ser resolvido, mas potência a ser valorizada. É compreender que cultura é o último reduto da liberdade quando tudo o mais parece ruir.
No fim do espetáculo, João e Anaíde se encontram nos céus. Mas aqui na Terra, o que se viu foi uma quadrilha que se fez altar, trincheira, escola, palco, e sobretudo, projeto de nação.
Porque o que Brilha Sertão acendeu, ninguém apaga mais.